31/10/2007

Sentido

O calor de minha respiração contrastando com o frio que a chuva promove lá fora. Essa mistura embaça as vidraças e eu tento passar o tempo escrevendo palavras soltas com a ponta do dedo. Não adianta, por mais que eu tente esquecer aquele lugar não sai de mim. Aquele lugar que teima em aparecer nos meus sonhos e que, em momentos de vigília, atormenta meus pensamentos. Por que algo pode me deixar tão feliz quando estou ausente de mim e tão machucado quando consciente? Acabo de perceber que as palavras que escrevo são de um sistema que eu não conheço, mas eu sei que elas têm significado, pois pra mim elas fazem tanto sentido, um sentido tão louco, que eu poderia adaptá-las à minha necessidade. Só que elas machucam, elas incomodam, elas lembram o lugar que eu queria estar e que eu não sei onde está, nem mesmo como é. Conheço apenas a sensação de dormitar entre nuvens e ondas e fogo, um desejo imenso que aquele lugar tem. Queria viver lá, mas não acho. De noite, sem abrir os olhos, tento tatear em busca de alguma pista que me faça reconhecê-lo quando acordado. Para que, quando eu passe caminhando por lá, eu saiba que é o que procuro. Entretanto, de manhã, já não lembro as pistas que criei, sobra-me apenas a sensação, e eu sei que ela não é igual durante o dia, não adianta procurar.

*olá, velhinho!

25/10/2007

Um conto mofado* ou Sobraram dedos

A música tocava e ela não sabia dizer o que era. Talvez Jazz, quem sabe um daqueles cd's de relaxamento, não importava. Tudo o que queria era fazer uma pergunta a ele:
- Você acha que sabemos quando vamos morrer?
- O quê?
- É, quero dizer, você já sentiu em algum momento que iria morrer?
- Que pergunta! Claro que não. Se tivesse sentido, estaria morto e não aqui, com você, escutando essa ladainha.
- Pois eu acho que somos capazes de prever, nem que seja por uma fração de segundo, quando vamos morrer. E digo mais, em se tratando de tempo, eu acredito que minha morte pode acontecer a qualquer momento.
- (Ele ri) Você está louca! É melhor parar com esse pó antes que você cheire, se engasgue e morra na minha frente, fazendo com que eu acredite nas suas profecias descabidas!
(E procura ar pra se recompôr das palavras que acabara de ouvir dela.)
- Você está na mesma que eu.
- É, mas não estou sentado em um sofá laranja pregando a minha morte para quem quiser ouvir. Levante-se daí e me ajude a escolher outro som.
- Esse aí.
- Âhn?
- Esse aí que está no chão. O cd com capa colorida que eu te trouxe há séculos.
- Qual? Este aqui?
- É. Não, o do lado.
- Você acredita que as músicas possuem alguma espécie de mensagem oculta por trás daquilo que ouvimos? Jogue o isqueiro, por favor.
- Você diz, uma idéia subliminar?
- Quê?
- Uma mensagem que só pode ser captada se estivermos em um estado alterado de percepção?
- O quê? É, pode ser. Talvez seja isso que eu esteja pensando. Você não acha que... Esquece.
- A nossa morte pode aparecr na nossa frente neste mesmo estado de percepção que eu mencionei. A tal fração prévia de segundo, o momento final que...
- Tá bem, você tem razão. Agora me diga, o que você preferiria nesse momento: saber quando e como vai morrer ou descobrir o significado oculto por trás de uma música que esteja ouvindo?
- (Ela ri) Como se uma anulasse a importância da outra. Morte e Música, ambas começam com M e ambas nos fazem delirar sobre seus propósitos. Louco, não?
- Hmmm...
- Ah, esquece. Preciso de mais pó. Você tem?
- Aqui.
- Será que vão sentir a minha falta quando eu morrer?
- Eu vou. Mas acho que se começarmos a contar as pessoas, sobrarão dedos.
(Os dois desabam no tapete peludo no canto do quarto.)
- Tá ouvindo?
- O quê?
- Nada. Achei que tinha escutado o John dizer "Yes, he's dead" no final da música.
- Não é agora que começa o Revolver?
- Acho que é.
- Faz sentido.
- O quê?
- Garanto que para ele faltariam dedos.
- Quais dedos?
- Esquece.



*como os morangos, de Caio F.

22/10/2007

Engano


Acordou e fez um café. Morava sozinho havia dois meses e ainda não se acostumara com a solidão obrigatória, que o deixava sem saída. Ligou a tv, e depois o computador. Colocou o Chico Buarque pra cantar na vitrola e desligou a tv. Olhou pela janela, observou o movimento dos carros e quase jogou o café que bebia de volta na xícara, tamanho o susto que levou quando a viu na frente da casa dele, num telefone público. Ela olhava pra cima, tentando encontrar alguém, e ele desconfiava de que esse alguém estava olhando pra ela, nesse exato momento, de pijamas, xícara de café na mão, com fundo musical de Chico Buarque. "Será que ela quer falar comigo? Não, deve ser coincidência...", ele pensava. Mas parou de pensar, porque quando o telefone começou a tocar, sua xícara quase caiu no chão.

Deixou o café sobre a mesa, tirou a agulha do Chico e ficou encarando o telefone. Correu pra janela, lá estava ela. Olhando pra cima. Ele olhou pro relógio, depois pro telefone, depois pra xícara de café sobre a mesa. Bebeu o último gole, desligou o computador, uma rápida olhada pela janela e foi dormir de novo."Não, não deve ser..."

3 andares abaixo, ela desistia.