26/11/2007

Alice e a Flor

Deitada sobre a grama verde e molhada, Alice respira com força. Às vezes ela faz isso para sentir seus pulmões inchando e ter certeza que ainda tem algum controle sobre seu corpo. Ela se vira de bruços e gruda o nariz na grama, gosta do cheiro de terra molhada, confere-lhe uma sensação de liberdade. De repente, como se tivesse levado um susto, Alice se senta e começa a encarar uma flor. Vermelha, suculenta, mas sem cheiro... "Como é linda!" Pensou amargurada. Alice olha para a grama e sorri. É um sorriso de compaixão. Com um movimento rápido, Alice arranca, amassa, joga a flor no chão e sai correndo. Ainda dá pra ouvir ela gritando: "Bem feito!".

13/11/2007

Separação

- Carlos?
- Macedo! Nossa, que bom te ver, cara!
- Mas por onde você andava, Carlos? Nunca mais te vi por esses lados...
- Pois é, aconteceram alguns problemas...
- O quê, Carlos?
- Bobagem, Macedo...
- Não, fala. Pode falar, que foi?
- Não, deixa quieto, vamos tomar uma cerveja e relembrar o passado que vale mais a pena...
- Ih, Carlão... Vamos então, mas diz o que houve.
- ... Eu me separei, cara.
- Ah não!
- É... Anos de...
- Não, espera. Já sei tudo. Aquela vagab...
- Quê? Não, peraí...
- Peraí não, Carlão. Agora que vocês se separaram, eu já posso te contar. Afinal, somos amigos, né?
- Ô, desde o colégio.
- Então, Carlão! Vai por mim, ela não valia nada!
- Como assim? Você tá falando da minha...
- É, da tua ex! Esquece ela, Carlos. O que mais tem é mulher por aí, sobrando.
- Não, não é bem assim, Ma...
- Cedo ou tarde, ia acontecer, Carlos. As mulheres só pensam no dinheiro. E convenhamos, competir com o Almeida, diretor de empresa...
- O Almeida, meu vizinho?
- É, aquele da casa com piscina. Nossa, pensando bem foi bem melhor que vocês se separaram, a Claudinha e o Almeida se merecem.
- Mas a Claud...
- É, Carlos. É a vida. Se você quer a minha opinião, eu acredito que o amor foi inventado pelo Roberto Marinho pra ganhar dinheiro com novela.
- Acho que você não ent...
- É, o amor não existe. Não existe. Pode ter sido uma invenção da mídia fonográfica. O que mais tem aí é canção de amor. E de dor de corno então...
- Corno?
- Ah, Carlos, nós somos amigos de longa data, e agora que vocês não estão mais juntos eu precisava te dizer o que metade da rua já sabia e a outra metade desconfiava.
- ...Oi?
- Oi, Carlos. Senta. Garçom, uma cerveja. Que foi, que você tá me olhando com essa cara, Carlos?
- Fala.
- O quê? Do Almeida?
- Que que tem o Almeida?
- É, quando a firma de vocês trocou de escritório e alugou uma sala longe do Centro.
- Sei.
- Então... você chegava mais tarde em casa, e o Almeida...bom, você sabe o resto.
- Eu não sei.
- É, eu sei que é difícil aceitar, Carlos, mas era verdade. A Claudinha não vale nada. Como você demorava mais pra chegar em casa, ela tinha mais tempo...digamos, disponível. Aliás, são 4 da tarde... Não era pra você estar com o seu sócio lá na firma?
- Macedo.
- Quê?
- Eu me separei do meu sócio, cara.

07/11/2007

O Preferido

Tinha que matá-lo. Todos os filhos-da-puta que passavam por aqui preferiam ele. Olhavam pra ele. Sentiam pena dele. Davam comida pra ele. Até mesmo sorriam para ele. Quando passavam por mim torciam o nariz. Parecia que estavam sentindo cheiro de bosta. Nem olhavam. Comida nem pensar. Só um dos dois poderia continuar. Por isso tinha que matá-lo.
Juro que não o odiava tanto quanto as pessoas que passavam. Os homens de terno. Falando difícil, pelo menos pra mim era difícil. Barbeados, cabelinho lambido. Jeito de quem engana todo mundo. Tinham cara de quem acabaria deputado. As mulheres sempre de salto. Roupinha combinando.Narizinho empinado. No fundo, eram todas putas. Mas já que eu não poderia matar os homens e as mulhres eu tinha que matar ele. E eu já estava cansado. Não aguentava mais roubar seus restos, quando havia restos. Eu não queria ficar abaixo dele. Queria que as pessoas me ajudassem em vez dele, que me olhassem como olhavam pra ele, só isso estava bom.Então matei. Foi numa noite de inverno. Eu estava passando um puta frio. Foi com uma pedra. Ele estava dormindo. Acho que nem sentiu. Ainda lembro daquele sangue gosmento escorrendo. Agora não tem mais cachorro nenhum, só eu.

*As críticas serão bem aceitas.

02/11/2007

Ponto-final da Vida*



Todos deveriam usar o magnífico ponto-final. Todos. Ele é uma espécie de herói não-reconhecido, uma velha personagem clichê de um conto frustrado. Não se dá importância a ele, mas ele está sempre lá, aguardando para salvar as estruturas mal-feitas e as idéias mal-formuladas.
De maneira geral, as pessoas não se suportam, atualmente; basta notar que a maioria delas utiliza fones de ouvido em seu percurso casa-universidade, universidade-trabalho, enfim. E tudo isso, todo esse problema de socialização, ocorre por que não se usa tanto o recurso do ponto-final quanto deveria. Passa-se *horas* tentando dizer algo que, com o poderoso ponto, diria-se em minutos, assim, resumidamente. Ele nos diz em uma frase o que diríamos em parágrafos. Em pelo menos três deles.

Nos textos escritos, a falta do ponto-final causa problemas seríssimos de incompreensão no leitor. Histórias que são escritas em quatro ou cinco parágrafos e que se dá para contar nos dedos de uma mão os pontos bem utilizados. E como o leitor fica? Não fica. Não entende. Ou melhor: esquece o texto em dois tempos.

Nos textos falados, a situação pode piorar. As mais diversas brigas e discussões poderiam ser evitadas se tivesse-se um ponto de referência geral – o ponto-final da vida. Diga o que você quiser realmente dizer em uma frase apenas [ponto]. Não enrole [ponto]. Não subestime a atenção alheia, seu namorado vai compreender sua fala de três palavras [ponto]. Ponto pra vida! “Dois pontos”.

Então, que se dê a atenção merecida aos pontos-finais das frases da vida. Talvez o ponto não seja necessariamente um final, mas sim o início de uma fase menos subjetiva e impessoal. Nos textos e relacionamentos, pontos. Ponto.

*mais um texto escrito para mais uma aula, mais uma vez