23/10/2008

Fim

Bom, depois de onze meses de blog e algumas semanas sem posts, decidimos pelo fim do Enfins. Os textos deste blog continuarão aqui, se for da vontade dos seus autores.

Em nome de todos, obrigado aos que nos visitaram e ainda nos visitam. E, pessoalmente, obrigado aos meus 4 companheiros de blog por dividir esse espaço comigo durante esse tempo.

Continuem visitando nossos blogs pessoais. Cuidem-se. Não vão se perder por aí.

E até mais.

08/09/2008

Enfim

O relógio dá um passo e são dezenove anos. Tempo suficiente para não querer mais nada. Tempo suficiente para desistir de tudo. Um dia você acorda e vê que o tempo, definitivamente, passou. As coisas escorreram pela sua mão. As coisas que você tinha, as poucas. Porque as que você não conseguiu em dezenove, não vai conseguir em trinta ou cinquenta.
Nesse momento que segue o passo derradeiro do relógio, olho para o nada. Lembro que muita coisa já foi. Que muito está indo e muito ainda vai. As coisas estão se apagando pouco a pouco. Haverá um dia, depois de muitos passos perdidos do relógio, que nem lembrar mais vou. Por causa do pouco que lembro, sei que, um dia, quis ser alguém, buscar alguma coisa, achar um sentido. Sei que sonhei.
Então vieram esses passos eternos do relógio. Derrubaram, pisaram e enterraram tudo. Murchar é o melhor verbo para definir vida. Vida, não morte. Na vida as pessoas vão se acabando aos poucos, vão murchando. Um dia morre um sonho aqui, outro ali. E acabou. Não existe mais nada. As utopias morrem um pouco por dia, assim como rosas em copos sem água.
Ainda olhando para o nada, penso: Nada. O tempo já corrói meus olhos, meus nervos, meus cabelos, meus ossos e minha alma. Não fiz, não faço e não farei nada. Tudo era utopia. Tudo desabou. Não me tornei um nada. Nasci. Não busquei a falta de glória. Ela me encontrou no ventre. Não desisti de nada. As coisas que fugiram de mim. Em algum tempo passado, eu quis muita coisa. Fui derrotado. Um homem pode ser destruído, não derrotado. Disse Hemingway. Mas não há destruição sem derrota. Então, também fui destruído.
O relógio dá outro passo. Acabou meu momento. Enfim.

15/08/2008

Décimo quarto

Todas nós, hoje, pertencemos ao décimo quarto andar. Lá embaixo, a parede de mármore decorada com seis grandes e estreitos espelhos. Pelas nossas costas eles refletem as portas daquele elevador antigo e barulhento no qual adentramos com a certeza de ter deixado um último suspiro preso em algum daqueles espelhos. Segundo (quem diabos usa elevador somente para poupar uma subida de um lance de escadas?). Sétimo. Décimo quarto.
O andar carrega por si só um fastio inenarrável. É a certeza do início das dúvidas. A fantasia transformada em boicote às nossas realidades, o gelo na espinha movimentando-se de vértebra em vértebra até quê.
Décimo quarto, anuncia a ascensorista ansiosa por algo ou alguém que a tire daquele buraco feito de madeira e sustentado por fios de metal que, dia após dia, subiam e desciam com suas memórias felizes.
Saímos. Em uma passada discreta e sorrateira descubro que não só entrei por uma porta delicada de vidro, como encontro-me na lúcida sensação de já ter estado aqui.

12/08/2008

Mesmices

O mesmo sol nasce naquela mesma cidade. Os pássaros cantam o que parece ser a mesma canção, e eu acordo, na mesma cama, no mesmo lugar, na mesma condição. Nada mudou, a não ser a cabeça, que parece doer um pouco mais, e o coração, que parece bater um pouco menos.

Visto as mesmas roupas, calço os mesmos tênis, saio de casa e vou para o mesmo lugar de sempre. O mesmo sol que acordou comigo agora está se pondo, logo depois daquele mesmo lago (será mesmo um rio? não há com quem discutir) que eu não me canso de olhar.

O Centro da cidade, que só pára quando a lua se acomoda lá em cima, continua agitado, como sempre. Entre as mesmas pessoas que caminham para o mesmo lugar, caminho ao mesmo ponto de ônibus, para voltar ao mesmo lugar de antes, onde escrevo mais uma insignificância qualquer, e vou dormir.

Em slow motion, o pensamento não acompanhava o olhar.

03/08/2008

Rotina variável

Ela não sente as coisas. Não só coisas, mas objetos muito especiais, como água ou pessoas. Neste momento, ela não sente que as milhares de gotas que caem do chuveiro a banham com profundidade especial nos ombros e costas, e é exatamente isso que a faz abrir um leve sorriso e sentir um curto arrepio. Mas, como ela só acredita no que vê, nem vai notar a discreta bolha que se formará em breve sobre o sabonete, que ficará solitário entre água e perfume, e isso faria toda a diferença.

Tanto é assim que ela tampouco sente a roupa que veste, o desodorante e o perfume, a maquiagem. Não sentiria nem que batessem em seu rosto – nunca bateram. A sensação do cheiro do café não durou três segundos e agora ela reclama mentalmente que vai ter de correr para dar tempo de escovar os dentes, estender a cama, arrumar a bolsa e a infinidade que inventa. Na verdade, ela não sente, mas enquanto corre deixa para trás um ar inconfundível de certeira segurança, tal que a deixaria menos insegura, mas ela não vê, afinal.

Vai chegar a tempo de subir no próximo ônibus, na parada, e na espera não vai sentir nem cheiro nem pena dos animais abandonados, é mesmo pena, mas nem falta de sua família e nem saudade dos amigos vai ter, por que não os tem, não os sente.

A única coisa que ela sente é a falta de sentir, pois tem consciência de que não sentir é terrível, simplesmente terrível. E é simples, simplesmente assim que não sente: automática, trabalhará e atenderá a todos os clientes, começará pensando em nada no almoço, atravessará a tarde pensando em tudo o que podia fazer e não faz nada, vai voltar para casa inevitavelmente a mesma e refletir que as pessoas, todas elas, em absoluto, ficam mortas de segunda a sexta esperando o “final-de-semana” chegar para ressuscitar e aproveitar ao máximo a vida (mas só nos sábados e domingos, pois são os dias em que não trabalham, e, claramente, somente nesses se pode ser feliz e completo e alegre para sempre, nem sabendo que o final-de-semana de verdade é sexta e sábado, é triste ninguém saber que o domingo é o primeiro dia da semana, bela e viva semana) – inclusive ela.

Lá se ia, junto dos dias mal contados e mal quistos, seu brilho e sua concentração humana, tão importantes como ferramenta de controle para a máquina da rotina, do sub-desespero. Faltava nada, quase nada para viver perfeitamente como se deve, pensava, apenas o toque, a mão, o ato, o abstrato. Para esclarecer, nela existia uma vontade tão imensa de agradecer a alguém - não sabia bem a quem – que parecia até sentir nesse momento, sim, até sentia: era apenas impotência e inferioridade.

No calendário, a data marca o dia do medo: é hoje. Ela percebe, então, que a porta de seu quarto está entreaberta, até havia sentido algo atravessando a sala atrás de si, mas como não viu... vai até o quarto, escuro, clica. A luz, que acende aos poucos, fica gradativamente mais forte, forte, mais forte, até que transforma tudo num branco irreversível e claríssimo. Brilhante.


Clara acorda sobre sua cama na manhã seguinte, sentindo tudo e enxergando quase.

29/07/2008

2.000 acessos.

Primeiro a gente pensa:

"Dois mil acessos... Uau."

Depois a gente questiona:

"Dois mil acessos... Quantos terão sido nossos?"

Enfim. Quero agradecer (creio que, em nome do grupo) a todos que ainda entram, e, quem diria, comentam neste humilde sítio.

Muito obrigado. E desculpem pela escassez de posts, mas férias deixa todo mundo moooole...

21/07/2008

Mãos dadas

Caminhava despretensiosamente, como sempre fazia. Passava por um bairro perigoso da cidade, mas não que corresse risco de ser assaltado, aliás, talvez tivesse sido melhor se fosse assaltado, ao invés do que acontecerá em alguns instantes. Ela morava a uma quadra dali, mas quase não saía de casa. Enquanto caminhava - sempre olhando para os pés - procurou algumas imagens daquela época (não muito remota) e por um momento se arrependeu de não ter aproveitado tudo o que deveria. Dois segundos depois, assoviou qualquer coisa dos Beatles e desviou a atenção do próprio andar pra ver se algum carro cruzava o seu futuro caminho.

Quando voltou a olhar pra frente - para logo depois retornar sua atenção aos próprios pés - lembrou-se de quando já fez esse mesmo trajeto tantas outras vezes acompanhado dela, e refletiu sobre o quanto mais feliz a gente fica ao andar de mãos dadas com quem se ama. Infelizmente, essa inútil reflexão que teria o potencial de ocupar uma tarde nos seus pensamentos não durou nem o tempo de alterar o maior dos ponteiros do relógio, pois ao olhar o rosto da menina que formava o casal à sua frente, do outro lado da rua, percebeu que ela era a mesma que há algum tempo atrás formava outro casal com outra pessoa, e que, se ainda não ficou explícito neste conto, essa pessoa a quem nos referimos era o nosso protagonista. Num curto espaço de tempo, pensou em sair correndo, em fingir amarrar os cadarços dos tênis, ou em colocar suas duas semanas no curso de teatro em prática, fingindo não conhecê-la. Ela sorriu ao vê-lo. Ele sorriu de volta. E agora não tinha mais escolha. Quando o sinal fechou para ambos, ele atravessou a rua, acenou e deixou escapar um sorriso. Ela sorriu mais uma vez, mas o puxou pelo braço quando viu que ele tentava escapar daquele reencontro inusitado.

- E aí, guri?
- Oi... Nossa, quanto tempo.
- Bah, como tu tá?
- Ah, tô aí... - não sabia se dizia que não fazia a menor idéia de como estava, e de que aquilo era extremamente absurdo, mas acabou por não dizer nada. Como sempre fazia.
- Ah, esse aqui é o Antônio.

Antônio nitidamente apertou a mão dela com mais força quando o cumprimentou, e por ser mais alto, demonstrava uma inevitável superioridade que deixava nosso personagem principal sem saída, como se fosse possível pensar em alguma naquele instante. Estava de cara fechada, e improvisava um olhar ameaçador que só não fez nosso protagonista esboçar uma risada, pois este já havia voltado a atenção para ela, numa tentativa desesperada de qualquer coisa que o tirasse daquela situação desconcertante:

- Bem... Eu vou indo, não posso chegar tarde em casa.
- Ok. Se cuida, tá? Qualquer dia a gente se fala. - a mão dela já apresentava certa vermelhidão naquele momento.

O sinal abrira novamente. Seguiram seus caminhos, um vindo de onde o outro voltava. Ela, de mãos dadas, ainda sorrindo, olhou para trás para um último aceno, mas ele já não estava mais ali. Não sabia onde estava naquele momento, mas sabia que não era agradável. Seguiu olhando para seus pés, agora mais rápido, pois era o melhor que tinha a fazer de qualquer jeito. Como sempre fazia. A propósito, também se lembrou de como ela não gostava que lhe apertassem a mão com força.

29/06/2008

Você e Só

Abstrato e sorrateiro, você sofre. Nunca dante atravessado caminho mais longo do que aquele que o leva a si próprio. Não era mais o mundano e o óbvio que o cercavam de um mim cada vez mais distante. Na companhia somente e unicamente de seus pesares, você se vê por fora e envolvido em uma dura capa de cristal; quebrado, trincado, como você já não nega mais o ser também. Seu sexo se desfez e você definitivamente perdeu o rumo de uma cama acalorada balançando-se em uma tentativa irrisória de intimidade consigo mesmo. Você se desligou de sua lúcida resposta a pensamentos corrosivos e diluentes. Não veste-se mais para ninguém. Você já não se importa em cariar os dentes ou cortar os cabelos. Na vida, há momentos em que é preciso parar, mas você não sabe ainda disso, talvez demore para chegar lá. Você sempre quer chegar lá. Ainda não sabe que uma hora é preciso parar. Quem sabe quem pode levar-te em união eterna para qualquer lugar? Você cansa. Só de pensar.

23/06/2008

1


Sem desembaraço

A moça observa a lua

E diminui o passo

16/06/2008

Contos Múltiplos III - Final 1

- Eu tenho medo de ficar cego.

- Eu também.

- Não, eu falo sério.

- Você não tem motivos pra isso.

- Pra falar sério? Escuta aqui Luísa, quantas vezes eu já te disse...

- Não tem motivos pra ficar cego, Alan. Quantas vezes EU já te disse pra escutar o que eu
falo até o final? Depois você fica aí, chorando a...

- Ta, ta, chega. É só que eu tenho medo de ficar cego.

- Mas você não tem motivos para isso!

- E que motivos teria eu pra te contar sempre a verdade?

- Não é essa a questão, Alan. O problema é que...

- O problema é que você nunca deu importância pros meus problemas, Luísa.

- Então me conta, de onde surgiu essa idéia de ficar cego?

- Não é de ficar cego, é de ter medo de ficar cego.

- Eu tenho medo de ficar grávida.

- Não desvirtua, Luísa!

- Não, eu falo sério.

- Você não tem motivos pra isso.

- ...Pensando bem, é verdade. Não tenho motivos pra isso.

- ...

- ...

- Você está grávida, Luísa?

- E você está cego, Alan.

15/06/2008

Dos chãos


Eu a pintaria de preto-e-branco se fosse um meio-fio. Não enfeitaria com canteiros, nem folhas e placas. Mostraria outros chãos mais asfaltados por onde passar, desviando daqueles projetos de buraco que tanto a incomodavam quando eu acreditava que estávamos juntos, e seria exatamente assim que ela correria o risco de se aventurar por um mercado que não é só seu. Talvez colhesse algumas picadas pelo caminho, algumas sangrariam muito, outras simplesmente não.

Seria das definições apenas uma pro vazio em que você se encontra, e eu sei que se encontra. Finge que não, mas sente que talvez, sim, com certeza, sim, nessa forma de não sentir as coisas, nem os passos, nem os semáforos. Muito menos os sinais vermelhos, antigamente apodrecidos no reflexo dos seus olhos. Você não se enxerga. E o pior mesmo é não se enxergar nem no espelho do seu quarto, na imagem sombreada do monitor, na taça do restaurante de Berlim, São Paulo ou da esquina. Tenta – sempre tenta num desconforto que dá pena, ou melhor, não dá, porque, em definitivo, não merece tantos alertas.

Eu não deixaria que a trafegassem, nem que a asfaltassem se não o fosse. Permaneceria sem saída, como sempre fora. Mais uma rua, um chão, só. Não consertaria as imperfeições. Saberia que nunca, ninguém, com dinheiro ou vontade, conseguiria consertá-la. Não haveria um jeito. Como uma velha velhinha de aniversário de quem não teve como conseguir outra: teimosa; e a lágrima no olho que escorre por, pelo menos, tê-la, e poder cantar parabéns, então.
Não há diversões para esse caminho. Nem soluções. Fuja, como eu.

11/06/2008

Lamba seu braço ossudo e descubra que, além de olhos, você também é feito de gostos.

28/05/2008

Contos Múltiplos III - Início - Motivo

- Eu tenho medo de ficar cego.

- Eu também.

- Não, eu falo sério.

- Você não tem motivos pra isso.

- Pra falar sério? Escuta aqui Luísa, quantas vezes eu já te disse...

- Não tem motivos pra ficar cego, Alan. Quantas vezes EU já te disse pra escutar o que eu falo até o final? Depois você fica aí, chorando a...

- Ta, ta, chega. É só que eu tenho medo de ficar cego.

- Mas você não tem motivos para isso!

- E que motivos teria eu pra te contar sempre a verdade?



[continua, acredito]

13/05/2008

Contos Múltiplos II - Final 2

Um dia qualquer de um mês não muito preciso. Eis que surgiu do nada. Aparentemente sem nome, admirando-se do que não é seu; construindo palavras e tecendo letras num bom-passar-de-tempo sem que tivéssemos a chance de revelar sua verdadeira face, uma vez oculta. Vem do Latim, por sua vez desvendamos. Mas seguiu-se a névoa por detrás de um nome marcante. Sua marca sempre fora Nihil.

Mas por quê aparecera? De onde? Para quê? Nas sombras da rede, sua identidade é preservada. Mas sabemos que haverá o dia em que a névoa desaparecerá e veremos o essencial. Veremos o remorso, a saudade, o amor, veremos a verdade. Descobriremos a razão de sua existência, o motivo de sua permanência; que outras palavras escreve em outros recintos, que outros pensamentos ocupam sua mente.

(Talvez até vejamos, através da penumbra, traços femininos de um rosto fino bem marcado por um par de óculos, com uma tímida e desajeitada franja caindo sobre a testa. Ou talvez consigamos perceber a textura da barba por fazer, que disfarça o queixo redondo e dá um ar de maturidade. Ou até mesmo o seu cabelo grisalho-quase-branco, muito comprido, cobrindo toda sua coluna e realçando seu rosto delicado, apesar de enrugado e cansado da vida. Com algum esforço talvez possamos ver a aba do boné virado para trás, e um rosto infantil e belo e povoado por algumas sardas solitárias.)

O prazer do mistério, por enquanto, agrada a ambos os lados. Mas ainda esperamos pelo dia qualquer de um mês não muito preciso, quando a névoa já não estará tão espessa e seu nome marcante será apenas um nome.

07/05/2008

Contos Multiplos I - Final 3

"Com a arma apontada na cabeça, não sabia o que dizer. Poderia pedir desculpas, mas para quê, talvez fugir, mas como? Pensou em rezar um pai-nosso. Como é que começa o pai-nosso mesmo? Não lembra. Não estou mais esperando pela morte, pensa ele. A morte já chegou. A morte me acompanha desde aquele dia. O coração parar de bater, o cérebro parar de funcionar, são só cerimônias. Estou morto desde aquele dia."

Apesar de se sentir morto, vazio, esse rito de morte não estava acompanhado de alívio, mas de uma outra sensação: o medo. Enquanto pensava em como agir, seu corpo, tomado pelo desespero, começava amolecer. Por mais que percebesse o resto de vida se esvaindo por seus poros e que soubesse que nada disso importava e que até merecia o cano gelado em sua fronte, procurava um grão de esperança. Antes que o encontrasse e que verbalizasse a idéia que lhe surgira naquele segundo, sentiu um estouro e sua cabeça encontrou o chão molhado e frio do banheiro.

03/05/2008

Contos Múltiplos II - Final 1 - "derramandoosanguedosegredo.com"

Um dia qualquer de um mês não muito preciso. Eis que surgiu do nada. Aparentemente sem nome, admirando-se do que não é seu; construindo palavras e tecendo letras num bom-passar-de-tempo sem que tivéssemos a chance de revelar sua verdadeira face, uma vez oculta. Vem do Latim, por sua vez desvendamos. Mas seguiu-se a névoa por detrás de um nome marcante. Sua marca sempre fora Nihil.

Não que gostasse daquilo tudo; não - It was like a joke. O dinheiro não era necessariamente atrativo, nem os contatos, nem o perigo: era o glamour que seduzia loucamente aquele corpo sem gosto, sem dono, sem cheiro, de Nihil. Sim, o glamour. Agora estava irreversivelmente empenhado em fazer mais pela família que o acolhera naquela tarde chuvosa, na estrada sem destino. E por si mesmo também.


O grupo tinha história. E nome. Claro, ele não o revelaria, nem o seu verdadeiro quis dizer e-nem-pista-por-favor-não-me-pergunte. Só queria fazer o melhor por seu trabalho, pela tradição sem precedentes, por tudo de mais abstrato que os cercava. Buscar por páginas que mostrassem o que de mais incomum havia no pensamento alheio – e nas manias, convicções, extremismos – era a vida de Nihil. Quer dizer, primeiro era isso, depois se perder mil vezes num emaranhado de não-dizeres para transformar em muros por onde pudesse escalar e ainda sobreviver do outro lado. Podia não parecer, mas era um árduo trabalho.


E muitas vezes dava certo. As vítimas acabavam por entregar identidades para lá do propícias pro seu objetivo: perfeitas. Não era fácil encontrá-las, as que conseguia, depois de todo o processo, iam para a próxima fase, onde o elemento superior as cuidava. As outras, ah, as outras... Nihil as comia. E bem. Com garfo e faca e molho Sakura, por favor.

Contos Múltiplos II - Início - "Pois o contrário de Nada é Nada e assim não se sai do lugar"

Um dia qualquer de um mês não muito preciso. Eis que surgiu do nada. Aparentemente sem nome, admirando-se do que não é seu; construindo palavras e tecendo letras num bom-passar-de-tempo sem que tivéssemos a chance de revelar sua verdadeira face, uma vez oculta. Vem do Latim, por sua vez desvendamos. Mas seguiu-se a névoa por detrás de um nome marcante. Sua marca sempre fora Nihil.
(continua....)

28/04/2008

Contos Múltiplos I - Final 2

"Com a arma apontada na cabeça, não sabia o que dizer. Poderia pedir desculpas, mas para quê, talvez fugir, mas como? Pensou em rezar um pai-nosso. Como é que começa o pai-nosso mesmo? Não lembra. Não estou mais esperando pela morte, pensa ele. A morte já chegou. A morte me acompanha desde aquele dia. O coração parar de bater, o cérebro parar de funcionar, são só cerimônias. Estou morto desde aquele dia.

Toda a merda que veio ou possa vir depois não vai alterar nada em nada. Estou morto desde o começo, desde o nascimento. Todos estão, mas poucos sabem. A verdadeira morte é viver assim. Minhas culpas, fugas e rezas são inúteis. Estou apertando o gatilho. "

16/04/2008

Contos Múltiplos I - Final 1 - "Da negação"

"Com a arma apontada na cabeça, não sabia o que dizer. Poderia pedir desculpas, mas para quê, talvez fugir, mas como? Pensou em rezar um pai-nosso. Como é que começa o pai-nosso mesmo? Não lembra. Não estou mais esperando pela morte, pensa ele. A morte já chegou. A morte me acompanha desde aquele dia. O coração parar de bater, o cérebro parar de funcionar, são só cerimônias. Estou morto desde aquele dia.

O dia em que a vi cair em meus braços, gelada e linda como nunca antes estivera.
Isolando essa lembrança até parece que fiz parte de uma cena de um filme desses cheios de clichês: "Uma bela mulher cai, nua, nos braços de seu amado. The end."
Mas não, não mesmo. Foi tudo bem pior. Não sei o que fazer. A angústia do fim toma conta de mim nesse momento, porém está sendo difícil acabar comigo mesmo. Sou um covarde, um bosta. Mas nada vai conseguir me fazer continuar aqui. Se ao menos eu soubesse o momento exato de puxar o gatilho...
Não deve haver algum. Estou demorando demais, não deve ser normal. Não vou desistir. Não.
Dramas. Deles, já basta todos os eventos que se sucederam na minha vida. E falando nela, quanta coisa eu poderia ter mudado. Mas não. O passado nos alcança somente pra nos lembrar de que é impossível voltar atrás. E eu mais do que ninguém, sei disso.
Não consigo mais esperar. Não aguento meu próprio cheiro, esse suor mal lavado que escorre na minha testa e quase desliza a arma da minha mão. Nojo de me ver no espelho. Nada mais importa.
Se ao menos ela soubesse como me arrependo."


A multidão se aproxima lentamente ao corpo esticado no carpete. Luzes estão acesas e uma música estranha paira no ar. Expressões de espanto e comoção dos sujeitos no local. No momento, três ou quatro deles lêem o papel rabiscado, deixado sobre a mesa.
Não há mais música."

Contos múltiplos I - Início

Um começo, quantos finais? Nas próximas semanas, meus companheiros de blog terão que terminar esta história:


"Com a arma apontada na cabeça, não sabia o que dizer. Poderia pedir desculpas, mas para quê, talvez fugir, mas como? Pensou em rezar um pai-nosso. Como é que começa o pai-nosso mesmo? Não lembra. Não estou mais esperando pela morte, pensa ele. A morte já chegou. A morte me acompanha desde aquele dia. O coração parar de bater, o cérebro parar de funcionar, são só cerimônias. Estou morto desde aquele dia."


Preparar...apontar...

07/04/2008

Novo documento em branco

Procurava trilha sonora para o momento de solidão ideal. É importante construir esse cenário propositalmente triste, obviamente melancólico para escrever um bom texto, dizia ele para si mesmo entre goles de uísque barato, observando o movimento dos carros através da janela do sétimo andar. Gostava de escrever em 3ª pessoa. Deixou apenas a lâmpada do abajur acesa, próximo à escrivaninha, onde mantinha seu caderno com poucas linhas escritas aberto. A vida já não valia mais nada. Na estante ao lado, discos do Joy Division, Smiths, The Cure, Bauhaus. A vida realmente não valia mais nada. Ao invés de pôr um disco na vitrola, liga o rádio. A imprevisibilidade sempre lhe atraiu mais. Em uma determinada estação, o locutor anuncia "Jump", do Van Halen. As primeiras notas são suficientes para o escritor fazer uma varredura completa de toda sua vida. Trilha sonora muito propícia. Tão propícia que

31/03/2008

Tudo o que não foi dito de Paris

Eu tento te contar isso desde que ficamos juntos aquela noite, em qualquer beco semidecadente de Paris. Claro, por que já foi dito tanta mas tanta coisa que todos já sabem que lá não é uma festa constante, nem centenas de lojas enfileiradas com os menos frascos, os maiores cheiros, nomes e multicores, muito menos Torre Eiffel por todos os lados. Talvez falem muito, mas dizem pouco – dizem pouco de nós dois.
Não era a nossa primeira viagem, muito menos a primeira vez que eu tentava te dizer algo e não conseguia. Há uns tantos anos, aquilo poderia significar a solidez da nossa cumplicidade e felicidade – mas naquelas semanas e, principalmente naquela noite, era no máximo fuga de tempos frágeis. E chegou até a ser divertido tentar te contar uma, duas, três, quatro vezes o que eu presenciei no verão que acabara de passar aqui, no Brasil. Nos cafés, naquele restaurante que conhecemos ao chegar e que só com nossa refeição financiaria uns bons gastos de uma instituição infantil, e até em meio nossas profundas carícias da noite do beco. Divertido, mas inútil.
Eu tentei te relatar o que aconteceu comigo, o que eu vi e o que nunca mais saiu da minha cabeça naquele bar do Museu, também. Eu tentei. Mas você queria ver a Monalisa, a pirâmide, e tirar foto de mais uns pra lá de cem artistas que eu não fazia a mínima. E então eu te segui, sim, por que no final era o que eu sempre fazia.
Foi aí que tive a divina paciência de deixar você observar todos os ângulos de todas as obras, as relíquias, a arquitetura, os interiores, os exteriores, os tetos, tudo. É, e você provavelmente nem teve tempo de absorver todos os fatos que te foram jogados por mim, naquele corredor tão vazio – Você nunca me escuta. Fica quieto, eu não to perguntando. Não vou perguntar se você não vai responder. Você não vai ouvir minha voz e nenhuma outra nunca mais. Não grita! Não quero mais te contar o que eu vi ou o que eu deixei de ver, não quero nem vou. Não grita, eu já disse. As orelhas que eu vou cortar agora são as suas, mas são as minhas também – quieeeeeto! – mando depois pelo correio.

Tudo o que não foi dito de Paris, em Paris, para Paris (para Páris) eu te conto agora, bem. Num daqueles dias em que você não quis ir à praia – já mal lembro dos que chegou a ir – fiquei totalmente sozinha, a areia quase deserta. O que não durou muito, chegaram três garotas bastante jovens, provavelmente irmãs.
Jogaram os chinelos na areia, próximos à beira-mar... e entraram na água. Os biquínis coloridos, os cabelos muito soltos num vento incomum de fevereiro... a primeira mergulhou de leve a ponta dos dedos e levou ao rosto: sinal-da-cruz. A segunda, à esquerda, o mesmo. Dois passos à frente, a terceira repetia a proteção dos mares. Como passar diante da capela da cidadela e não se benzer, não é, querido? Sim, era Deus ali. Era mais: fé. Fé. Fé que eu compreendi como minha, como nossa. Nosso amor tinha acabado, Fernando.
Foi desde que voltei pra casa nesse dia em Florianópolis que eu tento te contar, conversar de verdade. Ali, tínhamos acabado. Você não quis escutar.
Aqui vão tuas orelhas. E nada mais será dito.

23/03/2008

Nada

Seus olhos brilhavam com a angústia opaca de quem não sabe mais como continuar. Naquele momento de dor, de desespero e de imaginação o grito soava silencioso e desnecessário. Já não importavam os ideais e todo o conhecimento adquirido pela leitura de milhares de páginas secas e repetitivas. O que procurava... a liberdade estava ali e tão subitamente aparecera... ela sabia que não duraria. O calor... não importava. Mathieu a descobrira morrendo em uma guerra inútil e sem sentido, a Segunda. Ela acabara de descobri-la em sua própria guerra, em seu momento final de calor e vazio. Tudo estava claro e não era somente a luz do fogo, era a lucidez, a resposta que buscara. Ser livre é estar vazia, com nada mais a encontrar. Agora, com os cabelos chamuscados, ela tinha a resposta e batera de frente com a liberdade. Em instantes, porém, as chamas não permitiriam que a mensagem se propagasse.

18/03/2008

Um Rio Sem Pressa

Eram sábias, as duas gurias. De uma forma ou de outra, elas possuíam o básico e até o intermediário. E seguiam. Davam saltos diferentes, pra lados meio opostos (oposição meia tigela) mas que não as impossibilitavam de voar na mesma direção. Momentos. Agora sabiam o valor de todos eles. Todos que passaram até ali. Havia muito mais a descobrir e, isso elas pareciam tirar de letra. Letras. Muitas delas. Um alfabeto construído pra transparecer o que havia de ser dito. Que abandonem os velhos costumes e a acentuação barata. Ali em frente, aos olhos delas, o anseio era sempre mais. Criavam ilusões. Na doçura do encantamento prolongado, elas deslizavam na corda bamba que nunca nos trás um ponto final. Era o início. Transcorrem diálogos na madrugada. Há distância. O zum zum zum praiano ouvido lá, em nada se compara à lúdica calmaria do Guaíba, daqui. E lá foram elas. Saíram pra passear, deram-se as mãos, vem comigo que eu tô contigo, não larguei, não. E foi bom. Compartilharam as vidas no presente. Um passado vivido em tempo cronológico não faz suas cabeças. Aliás, o tempo passa só pra levar as folhas amassadas embora. Reciclaram-nas. Mutantes em busca do movimento colorido, risos e choros e falhas e bons dias as esperavam. Corrida diária em busca. Busca vida. Prazer em conhecer. Ser para aquilo que se nasce. Envolvidas na delícia e no medo da prática dos projetos, seguiam. O trapézio fez o trajeto de volta. Não coube a mim agarrá-lo, mas a ela. Um salto. Voltei. Pé no chão. Visamos o alto de nossas realidades flutuantes. Como espumas. Soubemos as verdades que não foram ditas. Palavras, as letras aqui e novamente. Vozes que se encontraram em rápidos momentos oportunos. Um gole na garrafa errada e uns cigarros consumidos. Voltemos agora ao princípio do envolver-se: deixei de lado velhos papéis. Assumi um inspirado nariz de palhaço. Vermelho e lúcido. Chamei Neruda no cantinho e confessei que mais uma vez, eu vivi.
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14/03/2008

Manifesto pé no chão

Todos vêem, mas viram a cara. Todos sentem o fedor, mas torcem o nariz. Sem filosofias baratas, mas o ser humano é o maior dos fingidores. Chega de falsos elogios, de mentiras simpáticas, de sabidões, de esperança. Sim. Esperança é droga, é fuga, é abstração. Nesse caminho finito até a morte temos esperança de que tudo vai melhorar, de que seremos alguém, de muito mais. A verdade não é nua e crua, é só a verdade. Quero pé no chão. Quero a verdade à marteladas. É hora de mandar tudo à merda. De ser sincero. De parar de sonhar. De mandar os sabidões para a puta-que-os-pariu. De dividir. De tentar até morrer. De não pecar por omissão. De entender que a simplicidade é o maior dos luxos. De parar de virar a cara. De parar de torcer o nariz. De despir a prepotência e a arrogância. De mandar os posudos ao caralho. De perceber que somos um conjunto e não um. De nos preocuparmos realmente com os outros. De ver que tem gente comendo lixo enquanto olhamos cardápios. De acabar com teorias e discussões que só nos levam ao sono. De pôr o pé no chão e viver.

01/03/2008

A Trágica e Estúpida História de Nicolau Tristeza Neto

Nicolau Tristeza Neto nunca planejara algo na sua vida com tanto esmero como a sua própria morte. Seu avô, Nicolau Tristeza, suicidou aos 18 anos, com um rádio na banheira e um filho na escola. Pelo menos, era essa a história que ele conhecia. Seu pai decidiu homenageá-lo pondo o seu nome no filho, sem imaginar o carma que havia acabado de se impor, naquele instante do nascimento do menino.

Nicolau sofria com sua aparência. Não contente em dar a ele os piores colegas de turma que ele poderia imaginar, o destino também pregou outras peças em Nicolau. Até os treze anos, Nico (ele preferia ser chamado assim, e se não fosse a chamada do colégio, seus pervertidos "amigos" não saberiam as infindáveis rimas que o nome dele possibilitaria nos oito anos seguintes) era estrábico. Aos nove anos, engordara muito. Era motivo de chacota quando criança.

Anos depois, Nico se tornara um adolescente traumatizado, transtornado e com sérias tendências depressivas. Fisicamente havia mudado, e mudado muito. Emagrecera, não era mais estrábico, e até poderíamos dizer que se tornou um jovem muito bonito. Porém, era introvertido e conversava pouco, apesar de também não se poder dizer que não era simpático. Mais de uma vez desceu do ônibus que ia em direção ao colégio para verificar se havia mesmo trancado a casa, ou desligado o gás. Talvez por ter pouquíssimos amigos e nenhuma namorada, era muito estudioso. Certamente entraria na faculdade aos dezoito. Tanto que, aos dezessete, passou em segundo lugar para Psicologia.

Apesar de não saber dirigir, Olegário Tristeza, seu pai, havia lhe dado um carro e uma viagem para o litoral com tudo pago. Ele perguntara ao filho se havia alguém (deduzimos aqui que o pai perguntava-lhe sobre alguém do sexo oposto) que queria levar consigo. Não, pai, foi a resposta, Prefiro ir sozinho, completou Nico com um sorriso no canto da boca.

Essa viagem ampliara o sonho de Nicolau: suicidar-se em grande estilo. Trocaria a banheira (a mesma de seu avô) pelo mar. Aproveitou o primeiro dia de viagem como se fosse o penúltimo. Comprou sungas, bermudas, camisetas e um par de óculos de sol (nunca havia ido á praia). Chegando finalmente á beira-mar, encontrou antigas colegas do primeiro grau. Não, elas não se lembram de mim, pensou ele, enquanto tranqüilamente se sentava perto das três meninas. Carla e Mayara admiravam o mar (ou algum menino que passava por ali) quando Manoela, que se sentava de costas para as outras duas, notara que conhecia aquele menino loiro de óculos escuros de algum lugar. Após quatro (ou cinco) segundos de reflexão, cutucou Carla:

-Ei, aquele ali não é o Vesgo?
-Quem
-O Nicolau, lembra?
-Aonde?
-Ali, ó.
-Atrás do loirinho?
-Não, o loirinho! Ele é o Nico!

Carla chamou Mayara. Esta, muito mais atenta, percebeu rapidamente que o garoto à sua frente era mesmo o Nicolau. O Vesgo!!! Será que ele continua vesgo, perguntou Mayara. As meninas decidiram ir lá falar com ele, sendo ele o Nicolau ou não. Na sorte, decidiram que Carla iria até lá chamá-lo.

-Oi!
-Oi...
-Nicolau?
-Oi...
-Oi, lembra de mim?
-Carla.
-Nossa, guri, como tu mudou!
-Pôxa, obrigado...
-Lembra da May e da Manu?
-Sim, sim, claro.
-Elas tão ali, ó.

Naquele momento, as meninas acenavam para ele. Elas, as mesmas que não se importavam com a sua existência sete anos antes, a não ser para falar mal do seu estrabismo ou do seu sobrepeso. Carla, acompanhada do antigo colega, voltou para o lugar onde as meninas estavam. Ele ainda não havia tirado os óculos escuros, e também ainda não havia se lembrado de que, nos seus onze-ou-doze anos era apaixonado por Carla. Os quatro ex-colegas conversaram muito, Nicolau se esforçava para ser sociável, e as meninas se esforçavam para chamar a sua atenção. Às sete horas, já sem óculos escuros, mostrando seus bonitos olhos azuis não-estrábicos, Nicolau se despediu das novas amigas, não sem antes marcar outra reunião, no mesmo lugar e no mesmo horário, para mais conversas e talvez uma cerveja.

No outro dia, Nicolau tinha planos. Vou ao mar, dizia em voz alta olhando para a praia da sacada do hotel, E não volto. Pagou os dois dias no hotel, e já deixou adiantado o pagamento dos cinco dias restantes da semana (Afinal, o hotel não tem culpa de nada, raciocina ele). Escreveu uma carta, e deixou sobre a cama do seu quarto, o destino (ou a camareira) que se encarregasse de levá-la ao seu pai. Na carta, agradecia por tudo, e pedia desculpas. O pai também não era culpado.

Às quatro da tarde, viu suas novas-velhas amigas sentadas na mesma toalha de ontem ("À direita da guarita 147, não esquece"), conversando animadamente. Apenas Carla notou sua chegada. Durante uma hora, conversavam sobre tudo: Tem visto alguém, Não, E a faculdade, Passei esse ano, Pra quê, Psico, Legal, É, Parabéns, Obrigado, Tem Orkut, Msn, Não, não me interesso muito, Pôxa, todo mundo tem, Pois é, eu não, Pois é.

Manuela e Mayara inventaram qualquer desculpa ("Cadê aquele cara que vendia canga?") e deixaram Carla e Nico a sós. Para não transformarmos este conto em novela ou romance, imaginem o óbvio das conversas que precedem o primeiro beijo. Foi o que aconteceu. Provavelmente o 30º beijo dela. O primeiro dele. Quando as meninas voltaram, Nicolau se lembrou do porquê de ter vindo à praia. Ir ao mar, não voltar, essa história toda, E agora, o que eu faço.

Nico não abandonaria seus planos. Disse que ia ao mar e já voltava, que desde que chegou na praia ainda não dera um mergulho sequer. As meninas não sabiam que, além do seu primeiro, Nicolau também desejava que este fosse o seu último mergulho.

Em direção ao mar, Nicolau tinha muitas dúvidas na cabeça. Com água nas canelas, olhou para trás: Carla o acompanhava com os olhos enquanto as outras duas amigas covnersavam sobre qualquer coisa desimportante, como qualquer coisa que se conversa quando se é adolescente. Carla também não tinha culpa de nada. Manuela e Mayara também não. Porquê fazer isso, perguntava-se Nicolau. Por causa da minha infância? Da minha solidão? Do meu destino? Ele é o culpado! O destino me trouxe aqui, me fez sofrer quando criança. A água passava dos joelhos. O destino... mas o destino também me trouxe a Carla. Ela era só um amor de infância, um amor tolo, infantil... mas não seria todo amor infantil? A água alcançava a cintura de Nico, e o repuxo aumentara consideravelmente. Aumentaram também suas dúvidas. E o meu pai? E a faculdade? É uma nova vida que se abre agora, parece até que o destino resolveu quitar suas dívidas, nada explica essa maré de coisas boas na minha vida! Falando em maré, a água já estava no ombro, e Nico sentia que, se tivesse que voltar, teria que ser agora, do contrário não teria forças para tal, já que também não sabia nadar. E o meu avô? O que pensaria? Nico nunca havia pesquisado a morte do avô. Mal sabia ele até este momento que o avô não se suicidara, que o rádio na banheira fora um acidente. E se ele não se matou, pensava ele, tardiamente. A água chegava ao pescoço. Não havia mais saída. Nicolau lutava contra o mar e tentava chamar a atenção do salva-vidas. Na ponta dos pés, ainda conseguiu avistar as meninas na areia. Começou a sacudir os braços, pedir por socorro, definitivamente se arrependera.

Carla, na beira da praia, acenava de volta para Nico, e conversava com as amigas sobre outro menino de óculos escuros que acabara de passar por ali.

29/02/2008

"104 que Contam"

Caros colegas enfinistas – e possíveis leitorinhos também!


Tenho o prazer e a enorme alegria em comunicar que Cíntia (mais conhecida como Cintilante) e eu (mais conhecida como muni) fomos duas das 104 felizes pessoas selecionadas para publicar seus contos em “104 que Contam”, antologia organizada por nosso querido professor Charles Kiefer. E o que mais? Estamos nas nuvens – quase que literalmente.

Gostaríamos de dividir este momento com vocês, pois é algo muito especial para nós, que escrevemos os textos selecionados; Um texto não se faz só com as idéias, experiências, leituras de um autor – mas com as idéias, experiências, leituras e tudo que vier de bom dos textos de outros autores. Daqueles autores que a gente lê com freqüência, dos que dormem ao nosso lado, na cabeceira, dos que fazem os tão queridos blogs, colunas de jornais, revistas e tudo o mais.
É importantíssimo, aliás, com este livro, ter a prova viva de que ainda há espaço para a boa leitura e para o bom mercado em nossa sociedade. Não só há como é grande: talvez as pessoas que se escondam. Ainda temos gente interessada em coisas que não sejam e-mails PowerPoint com “mensagens positivas” e livros que prometem a droga do auto-conhecimento. Que se dane.

E já que é com uma verdadeira família que se constrói ou se começa a construir uma possível carreira literária, é agradecendo que devemos anunciar esta novidade tão querida: agradecendo todos os que fazem parte de um processo que começa com um pensamento que às vezes parece bobo, que passa por dezenas de revisões e termina nas mãos ou nas telas de várias e várias pessoas.
Esse é o nosso começo. Pode parecer humilde para alguns, razoável para outros, mas que é realmente grandioso para nós.

15/02/2008

Instantes

Matou a garrafa. Três babados goles e meio metro à frente o separavam dela. O calor latejando em todo o corpo entregava a súbita vontade de possuí-la ali mesmo. Não enxergava a mais ninguém. Secou a barba molhada do whisky vagabundo que acabara de meter pra dentro e partiu. Mais dois passos e ela seria sua. Encarou o marmanjo que a agarrara neste instante e sem pensar duas vezes, caiu de soco em cima do cara. Agora era tarde. Dois dias depois e a pancada na cabeça ainda lhe rendia dores alucinantes. Pensou que diabos, o que é esse lugar e o que faz essa guria aqui ao lado, me encarando? Perdera a chance de saber que, finalmente, ela era sua.

06/02/2008

Soraia

Bueno.
Aproveitando então a boa maré Muni/Cíntia, aí vai a Soraia.
Originalmente publicado em euvoucorrendobuscaragloria.blogspot.com

*

Chama-se Soraia e não tem apego pelo nome. Cultiva uma personalidade volátil com alguns traços de quadradisse plena. Alguns diriam que é difícil catalogá-la no livro "como definir uma pessoa, parte I", porém, outros já a decifraram de cor e salteado. Não é lá muito difícil.
Toda terça feira acorda relativamente tarde e vai jogar na Mega Sena. Sustenta inevitavelmente uma conturbada esperança de vida fácil e de amor livre. Todavia, despenca diversas vezes dos andares mais altos que seu ego consegue alcançar, mas segue com o pó compacto na bolsa para retocar os devidos danos à maquiagem.
Suspira alto ao lado do namorado para demonstrar insatisfação e despeito. Mesmo nada tendo acontecido, sempre algo aconteceu para ela. Ameniza pequenas dores existenciais com sua irritante capacidade de tornar-se insuportável e intolerante, e sabe gabar-se muito bem disso.
Nas quintas feiras, desce os quatro infinitos andares do prédio e compra pão e refrigerante. E cigarros. Não sabe conviver em sociedade sem um maço de cigarros e um copo de bebida na mão esquerda - só consegue fumar com a direita.
Alcança os níveis mais altos de agudisse vocal quando a contrariam, e isso, também faz parte de seus traços pessoais mais marcantes. Pode-se dizer que ela faz questão de deixar rastros por onde passa. Gosta da vida boêmia como poucos, mas não pensa duas vezes quando o sofá azul da sala a convida para uma temporada de televisão e sedentarismo.
Dispensa educação e sutileza ao abrir a boca, seja para elogiar a sua melhor-amiga-que-acabou-de-comprar-aquele-vestido-vermelho-carmim-que-tanto-namorava, seja para despejar em miúdos uma incomodação "extremamente importante." Para ela, lógico.
Chama-se Soraia e poucos sabem disso. Instaurou a ditadura do apelido até a morte. É verdade que apenas uns três ou quatro conhecem-na tão bem quanto eu. Também é fato que ignora o y em seu nome e que decidiu que com i fica mais apresentável, chamá-la de Soraia. Então tá.

03/02/2008

É por que é segunda-feira


Terça. Quarta-feira. Quinta. Sexta, sábado, domingo.
É por que ta quente. Por que ta frio. É a chuva. O mormaço.

É que já é final de ano. É que você está cansado, não consegue mais se concentrar nas coisas, é que você ta ficando velho e, afinal, é fim-de-ano. Sim, você carrega tanto mas tanto tempo nessas suas costas macias, antes tão mais macias e agora. É que é Reveillon, e talvez você nem saiba como se escreva, é a fome, é a evasão dos seus estudos, manias, paixões. E agora você ta chorando, e é por que a vida é assim pra quem não tem nada, nem um tostão na alma, nem no coração nem mesmo no bolso. É assim. E também, é claro, por que não pára de nevar há cinco semanas e lá fora ta um frio de arder. Sua pele está ficando ressequida, e é por causa da baixa.

É que você está com muito muito muito sono, seus olhos não são mais olhos numa hora dessas, mas só dois gritos de desespero por um descanso que não vem. Suas pernas ficam bambas por alguns vários minutos, e nesses vários você não consegue controlar nada, e tudo por que o ar-condicionado está estragado. E não tem café. E seu inferno astral se aproxima, por que saturno não está na casa do caralho ou sei lá cacildas onde era pra estar.

Ta frio, mas é verão. É o aquecimento global, agora só pode ser. E a minha pressão vai cair depois do almoço – propositalmente. E eu to tão cansada...
É por que o ano mal-começou.

A Macunaíma, um abraço.

23/01/2008

Precisa-se de uma mutação voluntária

De um ano, passaram-se vinte e três dias. Pela primeira vez senti que as horas correm atormentando-me; a cor cinza revela um uivo ventoso incontrolável. As folhas queimadas pelo sol insistem em adentrar o meu quarto. Lá, empoeiram-se pilhas de livros insaciáveis e anseios noturnos descabidos. Talvez seria a hora de providenciar algumas mudanças, quem sabe algo desperta debaixo da cama? Eu, não sei. Diante da perplexidade de um momento como este, silencio as minhas vontades. Já é dia vinte e três e eu ainda não havia notado que as janelas do prédio em frente perderam suas grades de madeira.