31/03/2008

Tudo o que não foi dito de Paris

Eu tento te contar isso desde que ficamos juntos aquela noite, em qualquer beco semidecadente de Paris. Claro, por que já foi dito tanta mas tanta coisa que todos já sabem que lá não é uma festa constante, nem centenas de lojas enfileiradas com os menos frascos, os maiores cheiros, nomes e multicores, muito menos Torre Eiffel por todos os lados. Talvez falem muito, mas dizem pouco – dizem pouco de nós dois.
Não era a nossa primeira viagem, muito menos a primeira vez que eu tentava te dizer algo e não conseguia. Há uns tantos anos, aquilo poderia significar a solidez da nossa cumplicidade e felicidade – mas naquelas semanas e, principalmente naquela noite, era no máximo fuga de tempos frágeis. E chegou até a ser divertido tentar te contar uma, duas, três, quatro vezes o que eu presenciei no verão que acabara de passar aqui, no Brasil. Nos cafés, naquele restaurante que conhecemos ao chegar e que só com nossa refeição financiaria uns bons gastos de uma instituição infantil, e até em meio nossas profundas carícias da noite do beco. Divertido, mas inútil.
Eu tentei te relatar o que aconteceu comigo, o que eu vi e o que nunca mais saiu da minha cabeça naquele bar do Museu, também. Eu tentei. Mas você queria ver a Monalisa, a pirâmide, e tirar foto de mais uns pra lá de cem artistas que eu não fazia a mínima. E então eu te segui, sim, por que no final era o que eu sempre fazia.
Foi aí que tive a divina paciência de deixar você observar todos os ângulos de todas as obras, as relíquias, a arquitetura, os interiores, os exteriores, os tetos, tudo. É, e você provavelmente nem teve tempo de absorver todos os fatos que te foram jogados por mim, naquele corredor tão vazio – Você nunca me escuta. Fica quieto, eu não to perguntando. Não vou perguntar se você não vai responder. Você não vai ouvir minha voz e nenhuma outra nunca mais. Não grita! Não quero mais te contar o que eu vi ou o que eu deixei de ver, não quero nem vou. Não grita, eu já disse. As orelhas que eu vou cortar agora são as suas, mas são as minhas também – quieeeeeto! – mando depois pelo correio.

Tudo o que não foi dito de Paris, em Paris, para Paris (para Páris) eu te conto agora, bem. Num daqueles dias em que você não quis ir à praia – já mal lembro dos que chegou a ir – fiquei totalmente sozinha, a areia quase deserta. O que não durou muito, chegaram três garotas bastante jovens, provavelmente irmãs.
Jogaram os chinelos na areia, próximos à beira-mar... e entraram na água. Os biquínis coloridos, os cabelos muito soltos num vento incomum de fevereiro... a primeira mergulhou de leve a ponta dos dedos e levou ao rosto: sinal-da-cruz. A segunda, à esquerda, o mesmo. Dois passos à frente, a terceira repetia a proteção dos mares. Como passar diante da capela da cidadela e não se benzer, não é, querido? Sim, era Deus ali. Era mais: fé. Fé. Fé que eu compreendi como minha, como nossa. Nosso amor tinha acabado, Fernando.
Foi desde que voltei pra casa nesse dia em Florianópolis que eu tento te contar, conversar de verdade. Ali, tínhamos acabado. Você não quis escutar.
Aqui vão tuas orelhas. E nada mais será dito.

23/03/2008

Nada

Seus olhos brilhavam com a angústia opaca de quem não sabe mais como continuar. Naquele momento de dor, de desespero e de imaginação o grito soava silencioso e desnecessário. Já não importavam os ideais e todo o conhecimento adquirido pela leitura de milhares de páginas secas e repetitivas. O que procurava... a liberdade estava ali e tão subitamente aparecera... ela sabia que não duraria. O calor... não importava. Mathieu a descobrira morrendo em uma guerra inútil e sem sentido, a Segunda. Ela acabara de descobri-la em sua própria guerra, em seu momento final de calor e vazio. Tudo estava claro e não era somente a luz do fogo, era a lucidez, a resposta que buscara. Ser livre é estar vazia, com nada mais a encontrar. Agora, com os cabelos chamuscados, ela tinha a resposta e batera de frente com a liberdade. Em instantes, porém, as chamas não permitiriam que a mensagem se propagasse.

18/03/2008

Um Rio Sem Pressa

Eram sábias, as duas gurias. De uma forma ou de outra, elas possuíam o básico e até o intermediário. E seguiam. Davam saltos diferentes, pra lados meio opostos (oposição meia tigela) mas que não as impossibilitavam de voar na mesma direção. Momentos. Agora sabiam o valor de todos eles. Todos que passaram até ali. Havia muito mais a descobrir e, isso elas pareciam tirar de letra. Letras. Muitas delas. Um alfabeto construído pra transparecer o que havia de ser dito. Que abandonem os velhos costumes e a acentuação barata. Ali em frente, aos olhos delas, o anseio era sempre mais. Criavam ilusões. Na doçura do encantamento prolongado, elas deslizavam na corda bamba que nunca nos trás um ponto final. Era o início. Transcorrem diálogos na madrugada. Há distância. O zum zum zum praiano ouvido lá, em nada se compara à lúdica calmaria do Guaíba, daqui. E lá foram elas. Saíram pra passear, deram-se as mãos, vem comigo que eu tô contigo, não larguei, não. E foi bom. Compartilharam as vidas no presente. Um passado vivido em tempo cronológico não faz suas cabeças. Aliás, o tempo passa só pra levar as folhas amassadas embora. Reciclaram-nas. Mutantes em busca do movimento colorido, risos e choros e falhas e bons dias as esperavam. Corrida diária em busca. Busca vida. Prazer em conhecer. Ser para aquilo que se nasce. Envolvidas na delícia e no medo da prática dos projetos, seguiam. O trapézio fez o trajeto de volta. Não coube a mim agarrá-lo, mas a ela. Um salto. Voltei. Pé no chão. Visamos o alto de nossas realidades flutuantes. Como espumas. Soubemos as verdades que não foram ditas. Palavras, as letras aqui e novamente. Vozes que se encontraram em rápidos momentos oportunos. Um gole na garrafa errada e uns cigarros consumidos. Voltemos agora ao princípio do envolver-se: deixei de lado velhos papéis. Assumi um inspirado nariz de palhaço. Vermelho e lúcido. Chamei Neruda no cantinho e confessei que mais uma vez, eu vivi.
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14/03/2008

Manifesto pé no chão

Todos vêem, mas viram a cara. Todos sentem o fedor, mas torcem o nariz. Sem filosofias baratas, mas o ser humano é o maior dos fingidores. Chega de falsos elogios, de mentiras simpáticas, de sabidões, de esperança. Sim. Esperança é droga, é fuga, é abstração. Nesse caminho finito até a morte temos esperança de que tudo vai melhorar, de que seremos alguém, de muito mais. A verdade não é nua e crua, é só a verdade. Quero pé no chão. Quero a verdade à marteladas. É hora de mandar tudo à merda. De ser sincero. De parar de sonhar. De mandar os sabidões para a puta-que-os-pariu. De dividir. De tentar até morrer. De não pecar por omissão. De entender que a simplicidade é o maior dos luxos. De parar de virar a cara. De parar de torcer o nariz. De despir a prepotência e a arrogância. De mandar os posudos ao caralho. De perceber que somos um conjunto e não um. De nos preocuparmos realmente com os outros. De ver que tem gente comendo lixo enquanto olhamos cardápios. De acabar com teorias e discussões que só nos levam ao sono. De pôr o pé no chão e viver.

01/03/2008

A Trágica e Estúpida História de Nicolau Tristeza Neto

Nicolau Tristeza Neto nunca planejara algo na sua vida com tanto esmero como a sua própria morte. Seu avô, Nicolau Tristeza, suicidou aos 18 anos, com um rádio na banheira e um filho na escola. Pelo menos, era essa a história que ele conhecia. Seu pai decidiu homenageá-lo pondo o seu nome no filho, sem imaginar o carma que havia acabado de se impor, naquele instante do nascimento do menino.

Nicolau sofria com sua aparência. Não contente em dar a ele os piores colegas de turma que ele poderia imaginar, o destino também pregou outras peças em Nicolau. Até os treze anos, Nico (ele preferia ser chamado assim, e se não fosse a chamada do colégio, seus pervertidos "amigos" não saberiam as infindáveis rimas que o nome dele possibilitaria nos oito anos seguintes) era estrábico. Aos nove anos, engordara muito. Era motivo de chacota quando criança.

Anos depois, Nico se tornara um adolescente traumatizado, transtornado e com sérias tendências depressivas. Fisicamente havia mudado, e mudado muito. Emagrecera, não era mais estrábico, e até poderíamos dizer que se tornou um jovem muito bonito. Porém, era introvertido e conversava pouco, apesar de também não se poder dizer que não era simpático. Mais de uma vez desceu do ônibus que ia em direção ao colégio para verificar se havia mesmo trancado a casa, ou desligado o gás. Talvez por ter pouquíssimos amigos e nenhuma namorada, era muito estudioso. Certamente entraria na faculdade aos dezoito. Tanto que, aos dezessete, passou em segundo lugar para Psicologia.

Apesar de não saber dirigir, Olegário Tristeza, seu pai, havia lhe dado um carro e uma viagem para o litoral com tudo pago. Ele perguntara ao filho se havia alguém (deduzimos aqui que o pai perguntava-lhe sobre alguém do sexo oposto) que queria levar consigo. Não, pai, foi a resposta, Prefiro ir sozinho, completou Nico com um sorriso no canto da boca.

Essa viagem ampliara o sonho de Nicolau: suicidar-se em grande estilo. Trocaria a banheira (a mesma de seu avô) pelo mar. Aproveitou o primeiro dia de viagem como se fosse o penúltimo. Comprou sungas, bermudas, camisetas e um par de óculos de sol (nunca havia ido á praia). Chegando finalmente á beira-mar, encontrou antigas colegas do primeiro grau. Não, elas não se lembram de mim, pensou ele, enquanto tranqüilamente se sentava perto das três meninas. Carla e Mayara admiravam o mar (ou algum menino que passava por ali) quando Manoela, que se sentava de costas para as outras duas, notara que conhecia aquele menino loiro de óculos escuros de algum lugar. Após quatro (ou cinco) segundos de reflexão, cutucou Carla:

-Ei, aquele ali não é o Vesgo?
-Quem
-O Nicolau, lembra?
-Aonde?
-Ali, ó.
-Atrás do loirinho?
-Não, o loirinho! Ele é o Nico!

Carla chamou Mayara. Esta, muito mais atenta, percebeu rapidamente que o garoto à sua frente era mesmo o Nicolau. O Vesgo!!! Será que ele continua vesgo, perguntou Mayara. As meninas decidiram ir lá falar com ele, sendo ele o Nicolau ou não. Na sorte, decidiram que Carla iria até lá chamá-lo.

-Oi!
-Oi...
-Nicolau?
-Oi...
-Oi, lembra de mim?
-Carla.
-Nossa, guri, como tu mudou!
-Pôxa, obrigado...
-Lembra da May e da Manu?
-Sim, sim, claro.
-Elas tão ali, ó.

Naquele momento, as meninas acenavam para ele. Elas, as mesmas que não se importavam com a sua existência sete anos antes, a não ser para falar mal do seu estrabismo ou do seu sobrepeso. Carla, acompanhada do antigo colega, voltou para o lugar onde as meninas estavam. Ele ainda não havia tirado os óculos escuros, e também ainda não havia se lembrado de que, nos seus onze-ou-doze anos era apaixonado por Carla. Os quatro ex-colegas conversaram muito, Nicolau se esforçava para ser sociável, e as meninas se esforçavam para chamar a sua atenção. Às sete horas, já sem óculos escuros, mostrando seus bonitos olhos azuis não-estrábicos, Nicolau se despediu das novas amigas, não sem antes marcar outra reunião, no mesmo lugar e no mesmo horário, para mais conversas e talvez uma cerveja.

No outro dia, Nicolau tinha planos. Vou ao mar, dizia em voz alta olhando para a praia da sacada do hotel, E não volto. Pagou os dois dias no hotel, e já deixou adiantado o pagamento dos cinco dias restantes da semana (Afinal, o hotel não tem culpa de nada, raciocina ele). Escreveu uma carta, e deixou sobre a cama do seu quarto, o destino (ou a camareira) que se encarregasse de levá-la ao seu pai. Na carta, agradecia por tudo, e pedia desculpas. O pai também não era culpado.

Às quatro da tarde, viu suas novas-velhas amigas sentadas na mesma toalha de ontem ("À direita da guarita 147, não esquece"), conversando animadamente. Apenas Carla notou sua chegada. Durante uma hora, conversavam sobre tudo: Tem visto alguém, Não, E a faculdade, Passei esse ano, Pra quê, Psico, Legal, É, Parabéns, Obrigado, Tem Orkut, Msn, Não, não me interesso muito, Pôxa, todo mundo tem, Pois é, eu não, Pois é.

Manuela e Mayara inventaram qualquer desculpa ("Cadê aquele cara que vendia canga?") e deixaram Carla e Nico a sós. Para não transformarmos este conto em novela ou romance, imaginem o óbvio das conversas que precedem o primeiro beijo. Foi o que aconteceu. Provavelmente o 30º beijo dela. O primeiro dele. Quando as meninas voltaram, Nicolau se lembrou do porquê de ter vindo à praia. Ir ao mar, não voltar, essa história toda, E agora, o que eu faço.

Nico não abandonaria seus planos. Disse que ia ao mar e já voltava, que desde que chegou na praia ainda não dera um mergulho sequer. As meninas não sabiam que, além do seu primeiro, Nicolau também desejava que este fosse o seu último mergulho.

Em direção ao mar, Nicolau tinha muitas dúvidas na cabeça. Com água nas canelas, olhou para trás: Carla o acompanhava com os olhos enquanto as outras duas amigas covnersavam sobre qualquer coisa desimportante, como qualquer coisa que se conversa quando se é adolescente. Carla também não tinha culpa de nada. Manuela e Mayara também não. Porquê fazer isso, perguntava-se Nicolau. Por causa da minha infância? Da minha solidão? Do meu destino? Ele é o culpado! O destino me trouxe aqui, me fez sofrer quando criança. A água passava dos joelhos. O destino... mas o destino também me trouxe a Carla. Ela era só um amor de infância, um amor tolo, infantil... mas não seria todo amor infantil? A água alcançava a cintura de Nico, e o repuxo aumentara consideravelmente. Aumentaram também suas dúvidas. E o meu pai? E a faculdade? É uma nova vida que se abre agora, parece até que o destino resolveu quitar suas dívidas, nada explica essa maré de coisas boas na minha vida! Falando em maré, a água já estava no ombro, e Nico sentia que, se tivesse que voltar, teria que ser agora, do contrário não teria forças para tal, já que também não sabia nadar. E o meu avô? O que pensaria? Nico nunca havia pesquisado a morte do avô. Mal sabia ele até este momento que o avô não se suicidara, que o rádio na banheira fora um acidente. E se ele não se matou, pensava ele, tardiamente. A água chegava ao pescoço. Não havia mais saída. Nicolau lutava contra o mar e tentava chamar a atenção do salva-vidas. Na ponta dos pés, ainda conseguiu avistar as meninas na areia. Começou a sacudir os braços, pedir por socorro, definitivamente se arrependera.

Carla, na beira da praia, acenava de volta para Nico, e conversava com as amigas sobre outro menino de óculos escuros que acabara de passar por ali.