15/08/2008

Décimo quarto

Todas nós, hoje, pertencemos ao décimo quarto andar. Lá embaixo, a parede de mármore decorada com seis grandes e estreitos espelhos. Pelas nossas costas eles refletem as portas daquele elevador antigo e barulhento no qual adentramos com a certeza de ter deixado um último suspiro preso em algum daqueles espelhos. Segundo (quem diabos usa elevador somente para poupar uma subida de um lance de escadas?). Sétimo. Décimo quarto.
O andar carrega por si só um fastio inenarrável. É a certeza do início das dúvidas. A fantasia transformada em boicote às nossas realidades, o gelo na espinha movimentando-se de vértebra em vértebra até quê.
Décimo quarto, anuncia a ascensorista ansiosa por algo ou alguém que a tire daquele buraco feito de madeira e sustentado por fios de metal que, dia após dia, subiam e desciam com suas memórias felizes.
Saímos. Em uma passada discreta e sorrateira descubro que não só entrei por uma porta delicada de vidro, como encontro-me na lúcida sensação de já ter estado aqui.

12/08/2008

Mesmices

O mesmo sol nasce naquela mesma cidade. Os pássaros cantam o que parece ser a mesma canção, e eu acordo, na mesma cama, no mesmo lugar, na mesma condição. Nada mudou, a não ser a cabeça, que parece doer um pouco mais, e o coração, que parece bater um pouco menos.

Visto as mesmas roupas, calço os mesmos tênis, saio de casa e vou para o mesmo lugar de sempre. O mesmo sol que acordou comigo agora está se pondo, logo depois daquele mesmo lago (será mesmo um rio? não há com quem discutir) que eu não me canso de olhar.

O Centro da cidade, que só pára quando a lua se acomoda lá em cima, continua agitado, como sempre. Entre as mesmas pessoas que caminham para o mesmo lugar, caminho ao mesmo ponto de ônibus, para voltar ao mesmo lugar de antes, onde escrevo mais uma insignificância qualquer, e vou dormir.

Em slow motion, o pensamento não acompanhava o olhar.

03/08/2008

Rotina variável

Ela não sente as coisas. Não só coisas, mas objetos muito especiais, como água ou pessoas. Neste momento, ela não sente que as milhares de gotas que caem do chuveiro a banham com profundidade especial nos ombros e costas, e é exatamente isso que a faz abrir um leve sorriso e sentir um curto arrepio. Mas, como ela só acredita no que vê, nem vai notar a discreta bolha que se formará em breve sobre o sabonete, que ficará solitário entre água e perfume, e isso faria toda a diferença.

Tanto é assim que ela tampouco sente a roupa que veste, o desodorante e o perfume, a maquiagem. Não sentiria nem que batessem em seu rosto – nunca bateram. A sensação do cheiro do café não durou três segundos e agora ela reclama mentalmente que vai ter de correr para dar tempo de escovar os dentes, estender a cama, arrumar a bolsa e a infinidade que inventa. Na verdade, ela não sente, mas enquanto corre deixa para trás um ar inconfundível de certeira segurança, tal que a deixaria menos insegura, mas ela não vê, afinal.

Vai chegar a tempo de subir no próximo ônibus, na parada, e na espera não vai sentir nem cheiro nem pena dos animais abandonados, é mesmo pena, mas nem falta de sua família e nem saudade dos amigos vai ter, por que não os tem, não os sente.

A única coisa que ela sente é a falta de sentir, pois tem consciência de que não sentir é terrível, simplesmente terrível. E é simples, simplesmente assim que não sente: automática, trabalhará e atenderá a todos os clientes, começará pensando em nada no almoço, atravessará a tarde pensando em tudo o que podia fazer e não faz nada, vai voltar para casa inevitavelmente a mesma e refletir que as pessoas, todas elas, em absoluto, ficam mortas de segunda a sexta esperando o “final-de-semana” chegar para ressuscitar e aproveitar ao máximo a vida (mas só nos sábados e domingos, pois são os dias em que não trabalham, e, claramente, somente nesses se pode ser feliz e completo e alegre para sempre, nem sabendo que o final-de-semana de verdade é sexta e sábado, é triste ninguém saber que o domingo é o primeiro dia da semana, bela e viva semana) – inclusive ela.

Lá se ia, junto dos dias mal contados e mal quistos, seu brilho e sua concentração humana, tão importantes como ferramenta de controle para a máquina da rotina, do sub-desespero. Faltava nada, quase nada para viver perfeitamente como se deve, pensava, apenas o toque, a mão, o ato, o abstrato. Para esclarecer, nela existia uma vontade tão imensa de agradecer a alguém - não sabia bem a quem – que parecia até sentir nesse momento, sim, até sentia: era apenas impotência e inferioridade.

No calendário, a data marca o dia do medo: é hoje. Ela percebe, então, que a porta de seu quarto está entreaberta, até havia sentido algo atravessando a sala atrás de si, mas como não viu... vai até o quarto, escuro, clica. A luz, que acende aos poucos, fica gradativamente mais forte, forte, mais forte, até que transforma tudo num branco irreversível e claríssimo. Brilhante.


Clara acorda sobre sua cama na manhã seguinte, sentindo tudo e enxergando quase.